Como uma música da banda Secos e Molhados levou a uma reflexão sobre a gestão pública no Brasil
Quem acha que a irreverência chegou à música com a Madonna, os Mamonas Assassinas ou Taylor Swift, ou não conhece nada, ou é muito, muito novo.
No segundo caso, estará desculpado por não conhecer os Secos & Molhados, uma banda dos anos 1970 que conseguiu, com melodias incríveis e letras prá lá de inteligentes, unir o rock progressivo à MPB em músicas inesquecíveis. Foi onde o gigante Ney Matogrosso surgiu na cena musical, muito acompanhado por João Ricardo e Gérson Conrad.
Gosto de tudo mas, em especial, tenho voltado a escutar uma que se chama “Assim Assado”, que fala o seguinte:
São duas horas da madrugada de um dia assim
Um velho anda de terno velho assim assim
Quando aparece o guarda belo
Quando aparece o guarda belo
É posto em cena fazendo cena um treco assim
Bem apontado nariz chato assim assim
Quando aparece a cor do velho
Quando aparece a cor do velho
Mas guarda belo não acredita na cor assim
Ele decide o terno velho assim assim
Porque ele quer o velho assado
Porque ele quer o velho assado
Mas mesmo assim o velho morre assim assim
E o guarda belo é o herói assim assado
Por que é preciso ser assim assado
Por que é preciso ser assim assado
A música parece um jogo de palavras cadenciadas, meio como pano de fundo para duas expressões que pareciam refletir o Brasil dos anos 1970, falando de forma cifrada sobre o espírito do tempo, num estado de exceção.
Calhou de estar escutando uma lista, e aparece essa música, sugerida pelo algoritmo. E com isso voltei a escutar a banda e a música, e aos poucos fui me dando conta de que a letra e as expressões da música não têm como ser mais atuais, refletindo com bastante exatidão o estado atual de coisas no Brasil.
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“Assim assim” significa “nem bem nem mal”, “sofrivelmente”, “mais ou menos”. Não fala de intenção, mas de um resultado longe do ideal. “Assim assado” significa “a pessoa afobada, que quer fazer as coisas logo e sem planejamento, e acaba fazendo mal feito”, tratando de uma pobreza de espírito já na intenção, cujo resultado não poderá ser outro, que não algo mal feito, inferior, problemático.
Num acesso de síntese (forma da qual sou adepto, mas raramente bem sucedido), dá para dizer que o Brasil passa por uma fase “assim assim” porque tem o hábito ruim de fazer tudo “assim assado”.
Saúde? “Assim assim”. Educação? “Assim assim”. Transporte público? “Assim assim”. Mobilidade? “Assim assado”. Habitação popular? “Assim assado”. Segurança pública? Aí piora bastante, e está mais para “nem assim, nem assado”.
E as nossas cidades? todas “assim assim”, porque os nossos políticos e gestores têm o mau hábito de fazer tudo “assim assado”, no tempo da política (4 anos).
Metrô? variando entre “assim assado” e “nem assim, nem assado”.
Planejamento urbano? “Assim assado”. Gestão e zeladoria das cidades? “Assim assim”. Planos diretores? “Assim assim” e “assim assado”. Programas de requalificação das zonas centrais? “Assim assado”.
Eu poderia despejar mais uns mil exemplos, pequenos e grandes, de “assim assim” e “assim assado” para descrever as nossas cidades, os gestores públicos e os políticos dos executivos municipais, mas acho que já deu para pegar o espírito da coisa, não?
Pode ser que esse hábito ruim de pensar (e fazer) tudo com a lógica do “assim assim” e do “assim assado” esteja ligado ao tempo da política (onde toda e qualquer ação, obra ou projeto precise ter a campanha de lançamento e o evento de inauguração nos 4 anos de mandato).
Mas pode ser ainda mais preocupante, e uma outra hipótese é a de que essa forma de pensar tenha se convertido numa “talha mental”, numa estrutura de pensamento onde a qualidade, a visão de longo prazo e o vínculo com os objetivos reais daquela ação, obra ou projeto esteja rompido. O objetivo passa a ser, tão somente, uma vitrine política e mais uma ação de campanha.
Objetivos complexos têm o seu próprio tempo e, não raro, várias etapas de implantação com avaliações de qualidade e desempenho da etapa já executada subsidiando revisões e ajustes das etapas seguintes, e seus planos raramente cabem no tempo da política, ou num mandato apenas. São, não por acaso, chamados de projetos estruturantes ou políticas de Estado (e não de governo, ou de um governo específico).
Aliás, desconfie de projetos e planos ambiciosos e transformadores que estejam intimamente ligados a um determinado governo, ou a um grupo político, uma facção ideológica. Esses não são projetos de Estado (mas de um determinado governo), e têm grande chance de serem abandonados pelo meio do caminho, inconclusos ao final do mandato.
Em se tratando de planos ambiciosos e transformadores, não dá para fazer “assim assim”, nem “assim assado”.
Categorias: Música
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